terça-feira, 14 de julho de 2015

Lembranças de uma rua de terra

Madrugada de uma noite fria de inverno, mesmo debaixo do cobertor a sensação térmica parecia demonstrar que aquela noite seria a mais fria do ano. De súbito a insônia supera o sono e no silêncio notívago a memória começa trazer à tona lembranças dos tempos imortalizados pela história.
Do hipotálamo surgem as imagens daquele instante, em que pela primeira vez os pés tocavam o chão daquela rua. Daquela via que seria o local da sua morada por muitos anos.
Das reminiscências jorram lembranças dos tempos em que aquela rua de terra, sem nenhuma pavimentação, abrigava todas as tardes crianças brincando pelas ruas, sendo que muitas vezes acabavam sendo confundidas com a própria terra, por estarem tão envoltas por uma camada de poeira. No corre-corre, próprio das crianças, observava-se bolas indo em várias direções, bicicletas passando, tombos acontecendo, jogos de biroscas, a famosa “pelada” (futebol)… às vezes alguém gritava por um joelho esfolado, uma unha quebrada, um dedo torcido… mas nada que abalasse e fizesse com que no cair da tarde aquelas cenas se repetissem.
Na rotina destas tardes diárias, a vida era compartilhada com galinhas, pintinhos, às vezes patos e gansos e não tão infrequentes porcos e cabritos. Não tão diferente das milhares de ruas de terra espalhadas pelos rincões desta nação.
As casas simples, sem luxo, caracterizavam os adornos da rua… com janelas e portas de madeira, telhas cumbuca ou amianto, geralmente tingidas de cal… boa parte seguia o mesmo padrão estrutural.
Eram raríssimas às vezes que se ouviam reclamações de algo, que aos olhos daquela época, eram vistos como impróprios para a vivência coletiva. Assim, percebiam-se pouquíssimos muros entre as casas, portão era coisa notada aqui e acolá e grades inexistentes. Campainha? Era desnecessária, pois o grito anunciava a chegada da pessoa, que praticamente já se encontrava perto da porta.
Mas a vida segue o seu curso, e como diria Charles Darwin, as coisas evoluem, tornando as mudanças inevitáveis. Em um dia de sol a rua de terra foi ganhando nos seus extremos uma fina camada de concreto, que tinha por objetivo delimitar sua extensão e cumprimento, e logo em seguida, aos poucos, foi sendo tampada, vagarosamente, por uma camada de pedras enfileiradas, irregulares e semi-pontiagudas. Sem que notassem não se via mais terra, a rua estava calçada. Porém, havia uma certeza, nos tempos de chuva o barro acabara; nos tempos de seca, a poeira diminuirá. A profecia se concretizou!
A partir de então, as mudanças na rua e seu entorno tornaram-se cada vez mais frequentes. As casas foram ganhando novos formatos e cores, os muros e grades começaram a fazer parte do cenário… as bolas, o  futebol, as biroscas… sumiram.
O pregresso chegou em definitivo, quando a era da pedra foi substituída pela era do petróleo. A rua que um dia foi de terra, tornou-se de pedra, passou a ser coberta por uma fina camada de asfalto. O logradouro estava no ápice da evolução!
Com o asfalto a rua nunca mais foi a mesma, passou a ganhar corpo de modernidade, as casas são mais vistosas, pintadas com cores modernas, enfeitadas, praticamente em todas há muros, portões, cercas, grades… e é claro a companhia!  Na rua, em meio aos transeuntes, os “aviões” (que parecem mais jatos) andam para lá e para cá, motos, carros e bicicletas insistem em buscar o limite máximo da velocidade…
Entre bocejos e cochiladas brota uma dúvida: e a maioria dos moradores, das crianças… onde estão? A melhor resposta encontrada, em meio a penumbra mental, resume-se do seguinte jeito: escondidas dentro das prisões domiciliares em que aquelas casas simples foram se transformando.
Sem que percebesse o sono encarregou-se de sugar os seus pensamentos. Naquele estado inerte, começa a sonhar com aquela rua de terra. No seu momento de sonolência a rua passa pelas mesmas transformações verificadas pelos seus lúcidos pensamentos… a única diferença é que no sonho as pessoas também evoluíram e não transformaram a rua de terra numa selva de pedra.
Walber Gonçalves de Souza (Crônica publicada no Jornal Diário de Caratinga - 14/07)

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