domingo, 27 de dezembro de 2015

Artigo Diário de Caratinga

TRAVESSIA

Crônica publicada no dia 08/12 no Jornal Diário de Caratinga.


Fim de ano chegando, momento de parar para festejar, para rever amigos, colocar aquelas coisinhas que ao longo do ano foram se acumulando no lugar e também a época de reavaliar a vida, nossos pensamentos, valores e atitudes.
Como diria Fernando Pessoa, “há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já tem a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia e se não ousarmos fazê-la teremos ficado para sempre à margem de nós mesmos”
Uma das características da complexidade humana é justamente a nossa capacidade de mudar, desde que haja necessidade e vontade, é claro. Algumas mudanças fogem ao nosso controle pois fazem parte do desenvolvimento biológico, fazem parte da natureza humana, nascer, crescer, desenvolver-se e deixar o legado para a prosperidade da própria humanidade. Agora, outras são frutos das nossas escolhas, do ambiente cultural em que vivemos, das pessoas com que nos relacionamos, dos sonhos e esperanças que cultivamos.
Ao longo da vida, portanto, passamos por vários ciclos independentemente se eles são próprios da natureza humana ou se são frutos das nossas escolhas. Assim, estamos vivendo eternos momentos de travessias, que representam as nossas passagens por estes ciclos, até que eles se completam e outros comecem, dando início a uma nova travessia.
Entre estas travessias podemos destacar algumas que fazem parte das comemorações de fim do ano. Quando alunos estão vivendo seus momentos de formatura, fechando sua travessia escolar, acadêmica, e vivendo a expectativa dos dias vindouros. Outros ainda, terminando o ensino médio e preparando-se para dar início ao mundo universitário.
No dia a dia da vida nos deparamos também com momentos de travessias diversas, a casa que finalmente ficou pronta para tornar nossa moradia ou a reforma que revigorou o ambiente; a viagem dos sonhos que foi realizada; o casamento de algum ente querido; a gestação de um filho; o fim de um ciclo em algum emprego; a mudança para um nova casa numa nova cidade; o fim da vida de solteiro ou do casamento; pessoas que deixam a nossa vida, pessoas que entram na nossa vida; enfim, são intermináveis as situações que podem nos proporcionar situações de travessia.
Mas devemos ter consciência que as travessias não são fáceis, exigem renúncias, mudanças, quebras de paradigmas. Um exemplo simples da minha época de infância, período de férias escolares, lembro-me da pinguela que até hoje está localizada no mesmo lugar unindo as margens do Rio Caratinga, mas que seria necessário transpô-la para que minha família pudesse chegar até à casa dos meus avós que moram na zona rural. Ainda em casa o frio na barriga aparecia e com ele o medo de cair no rio, mas a vontade de revê-los e estar com os primos que reuniam-se neste período era maior possibilitando assim que aquela barreira mental fosse ultrapassada.
Mas em todas elas floresce algo de importante, incrementa novas possibilidades de aprendizado, do surgimento de novas amizades, descobertas inesperadas, proporcionando um novo mundo que colabora para o nosso aperfeiçoamento humano e intelectual.
Não querer conviver com as travessias é deixar o mofo invadir a alma, significa paralisar-se aos convites que a vida nos oferece a todos os instantes proporcionando-nos possibilidades infinitas de sermos melhores. Não querer conviver com as travessias é permitir o definhamento da existência, passando pela vida sem que ela se gaste em plenitude. Não querer conviver com a travessia significa querer estocar algo que não se estoca, a própria vida, que possui dinâmica própria mas permite-nos por os adornos.
Assim, a intensidade da coragem que permite a travessia é a mesma intensidade da felicidade de chegar na outra margem do rio, de curtir uma roupa nova, como diria Fernando Pessoa, de descobrir que há novas possibilidades, que há novos horizontes, que como diria Cazuza "a vida não para".
Lulu Santos na canção "Tempos modernos" dizia, "eu vejo um novo começo de era, de gente fina, elegante e sincera, com habilidade pra dizer mais sim do que não". Milton Nascimento e sua famosa música "Travessia" e tantos outros autores que se debruçaram sobre este tema transformando-o em arte, convoca-nos para uma reflexão: só há travessia para quem se permite atravessar.
Walber Gonçalves de Souza é professor.

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