terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Artigo no Jornal Diário de Caratinga

A MÃE, A MENINA E O LIXO

Artigo publicado hoje (23/02) no Jornal Diário de Caratinga.

Provavelmente seria um dia como outro qualquer, as pessoas acordando, saindo de casa e dirigindo-se a seus postos de trabalho. Mas aquela manhã foi diferente, ao sair de casa algumas pessoas se depararam com uma imagem estranha vindo de um monte de entulho misturado com lixo e ao se aproximarem perceberam que aquela imagem se tratava de uma criança recém-nascida ali jogada.
Num primeiro momento o espanto, os gritos, as fotos, noutro o desespero, a raiva, os julgamentos. Todos queriam saber por qual motivo aquele episódio estava acontecendo. Pois não era uma mulher que havia abandonado uma criança, mas sim uma mãe que deixara sua filha à mercê da morte. E as respostas, é claro, não tardaram a aparecer, a culpa é da mulher, da mãe.
Como o ocorrido é recente, as letras misturam-se com a indignação, e isto pode levar a reflexões desprovidas de sentido, mas como uma forma de desabafo e mesmo correndo o risco de palavras descabidas, vou tentar deixar algumas análises que a meu ver cabem perfeitamente na triste realidade em questão.
Sabemos que o abandono de crianças em lixos, caçambas, calçadas não é um fato novo nem tão pouco incomum na nossa sociedade, infelizmente periodicamente somos envolvidos com noticiários deste tipo. Este não foi o primeiro caso e certamente não será o último. Mas o que está provocando tais comportamentos?
É claro que o sentimento de raiva torna-se presente em uma ocasião desta. Saber que uma mãe simplesmente descartou sua filha, como se fosse uma embalagem sem utilidade alguma é dolorido. É preciso muita calma para não dar a ela o mesmo destino. E é preciso ter calma, muita calma, respirar e pensar. Assim deixo alguns questionamentos.
Primeiro: onde está o pai desta criança? Onde está aquele que deveria ser o corresponsável por acompanhar a gestação, por cuidar da gestante? Onde está o homem que foi homem/reprodutor, mas pelo visto não quis ser pai?
Milhares de crianças na nossa cidade, no nosso país, são abandonados pelos seus pais, muitos sequer recebem o seu nome, suas certidões de nascimento carregam o vazio do abandono, outros nunca tiveram um contato que durasse pelo menos um dia. Mas culpar a mãe, a mulher é sempre mais fácil.
Segundo: o alimento intelectual da maioria, com a desculpa de que tudo é cultura, é recheado de um vazio, que até o vácuo se sente cheio. A banalidade da vida está estampada em todos os lugares. A atual configuração do ser parece receber uma programação em que os valores são algo sem procedentes, sem sentido. Assim, matar, viver, nascer… parece ser a mesma coisa. Desde tenra idade somos envolvidos por uma série de situações que retiram do ser a sua essência.
Uma pessoa que cresce acreditando que tudo aos poucos vai perdendo o seu sentido, que o que importa na vida é se dar bem custe o que custar, vai valorizar o quê?
A morte da menina é um retrato cruel de milhares de crianças que estão mortas pelo abandono, mas que ficam perambulando pelas ruas como zumbis, sem alma, sem rosto, sem destino, morrendo aos poucos. A morte da menina é um retrato cruel de como os adultos percebem a vida, os seus semelhantes.
Terceiro: voltando à mãe, mas uma peça desta engrenagem desumana, onde estão todos aqueles que por competência deveriam estar acompanhando de perto a gestante? Onde está sua família? E os órgãos públicos que deixam as pessoas abandonadas em troca dos intermináveis conchavos politiqueiros? Onde estão as pessoas que conheciam a mulher e sabiam da situação dela e preferiram o silêncio?
Não quero vitimizar ninguém, nem tão pouco defender o que não se defende. Pois isto não cabe a mim! Mas nossa sociedade aos poucos vai colhendo o que ela mesma está plantando. E não adianta fechar os olhos, os ouvidos, tudo é fruto daqueles que se acovardam, daqueles que não têm coragem, daqueles que se omitem, daqueles que preferem ver a banda passar, daqueles que preferem o silêncio, o silêncio da covardia.
Walber Gonçalves de Souza é professor.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Jornal Diário do Rio Doce

Artigo "República de lama" publicado no Jornal Diário do Rio Doce, 
da cidade de Governador Valadares no dia 25 de novembro de 2015.


terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Artigo publicado no Jornal Diário de Caratinga

CUIDE DO SEU BAÚ
Artigo publicado (02/02) no Jornal Diário de Caratinga.


Em tempos idos era comum a prática de se guardar tudo. Qualquer coisa que fosse não era descartado, pois se acreditava que em algum momento poderia ter alguma serventia. A lata de massa de tomate depois de usada virara caneca, que de tanto usar furava e acabava tornando-se um suporte de prender as antigas vassouras feitas de um tipo de mato, muito usada nas roças para varrer os terreiros. Os pinicos viravam vasos de plantas, as sacolas de leite transformavam-se em forros de mesa, as roupas de filho em filho transfiguram-se em panos de limpeza. Tudo durava literalmente até acabar, portanto, as mais diversas experiências tornavam-se mais duradouras.
Assim, ao longo da vida as pessoas, mesmo sem perceber, colecionavam um pouco de tudo. E as coisas mais importantes acabavam ganhando um destino especial, os baús ou em outros casos uns grandes caixotes de madeira, muito comum nas antigas casas rurais.
Estes baús gradativamente vão se preenchendo de tudo aquilo que de alguma forma carrega consigo um valor que vai além da própria matéria dele constituída. As fotos marcam o tempo e levam consigo as lembranças dos momentos que ali se eternizaram, pois por serem únicos não se repetirão. As roupinhas dos recém-nascidos, os primeiros dentes, os primeiros cabelos cortados, os anéis, as alianças de casamentos dos avós, pais, padrinhos, os lenços, as canecas… Enfim, tudo aquilo que de alguma forma representa algo imaterial: as lembranças, os sentimentos, as saudades, a personificação das pessoas queridas.
O mês de fevereiro pode ser caracterizado pelo mês em que muitas pessoas despertam para a abertura da tampa dos seus baús. Quantos estão deixando as suas casas, suas famílias em busca de novos dias, de novos planos. Abrindo as portas dos seus baús para guardarem as lembranças da convivência com outras pessoas, novos ambientes, novos aprendizados.
E aos poucos o nosso baú deveria ser preenchido pelo bem mais precioso, e que nenhum ouro do mundo paga, nenhum apagador apaga e nenhum ladrão nos rouba: o conhecimento; que provém das nossas experiências, das nossas leituras, dos diálogos, dos nossos estudos, das observações que fazemos das coisas que nos rodeiam.
E por que o conhecimento se torna importante para a nossa vida? Porque além de ser uma das chaves do nosso baú será também o combustível que nos dará força para quando for a hora de termos coragem de limpar o baú.
Pois como todo recipiente chega um instante que ele começa a ficar lotado. Num primeiro momento vamos apertando aqui, ali, e tentando de alguma forma introduzir aquilo que queremos guardar, mas chega uma ocasião que começamos a perceber que a tampa não está fechando direito, que está lotado demais, até que não dá mais e verificamos que é preciso parar para cuidar do baú.
Tirar tudo para fora, conferir peça por peça e ver dentre aquelas quais merecem ocupar novamente o espaço do baú. Sobre algumas coisas ficaremos em dúvida se vale a pena guardar novamente ou não, outras teremos certeza que já não vale a pena mantê-las ali e tantas outras terão eternamente o seu espaço cativo. Pois a vida é assim, o conhecimento vai nos mostrando o que de fato tem importância para a nossa vida, para a nossa história, para a nossa existência e o que representa apenas um momento, importante quando aconteceu, mas que não vale a pena ficar simbolicamente eternizado.
Assim, quando completamos o nosso ciclo biológico na terra e os primeiros dias de luto dos familiares passam, um dos primeiros lugares a serem mexidos e remexidos é o baú de quem nos deixou. Pois dele com certeza brotarão as principais lembranças de toda a nossa vida.
Cuidar do nosso baú significa cuidar da nossa vida. O conteúdo do baú refletirá e muito o que fomos, o que acreditamos, nossas qualidades e mazelas. Cuidar do baú significa cuidar de nós mesmos. Uma vida não cabe em um baú, o que cabe são alguns momentos, algumas histórias, algumas marcas, aquilo que realmente somos. Não percamos a coragem e zelo de cuidar do nosso baú.
Walber Gonçalves de Souza é professor.